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Somos sós. A cada dia, nascemos de nós e morremos em nós. Nascemos, pois criam-se ideias, iniciativas, atos e pensamentos próprios, que, em que pese alguma influência externa, nascem de nós – isto é: são de nós por direito. Morremos em nós, pois cada um dos citados só deixa de ganhar força se assim for de nossa vontade, em que pese, no entanto, a ajuda ou desajuda de terceiros para tal. A partir disso, creio que consigamos construir um estudo breve da solidão atual, com três peças fundamentais: a negação dessa solidão, os meios para negá-la e as consequências.

Um calafrio me ocorreu, certa feita. Ele me percorreu os braços e, acompanhado de uma coceira inquietante na sobrancelha, foi curado quando pus as mãos em meu celular. De chofre, parou; nem o sentir mais eu sentia… existira? Bom, tanto faz. Segui. E por seguir, digo que segui não dias ou meses, mas horas; foram horas quando, de novo, o calafrio e a coceira, perturbações. Mas, como para toda doença existe a respectiva cura, curei-me, e do mesmo modo: a mão pesada a tocar a tela do celular; ao vê-lo brilhar, como um tesouro, puxo-o pelas costas e me delicio com ele, passando a mão leve na tela fria. Era algo bom, afinal: ao sentir dor, curo-me – viro-me médico!

Os dias se passaram, e eu repeti a tradição. Era um hábito. Muitas vezes, antes de me dirigir a escola; muitas vezes, ao chegar da escola; muitas vezes, a cada refeição e a cada treino finalizado. Todas as vezes, porém, antes de dormir. Mas foi durante essas vezes contínuas que decidi (nem sei porquê) dar início a uma leitura. Cartas a um jovem poeta – livro que expõe ao público as cartas de Rainer Maria Rilke para Franz Xaver Kappus – interessou-me por dois motivos: um, a sua brevidade (eu o poderia ler em um dia); e dois, pelas cartas serem de um dos maiores poetas da língua alemã do século XX. A questão é que demorei duas semanas para terminá-lo. Eu sabia que detinha a mania de ficar relendo e relendo as páginas por as acharem bonitas, ou só porque não tinha entendido mesmo, e por isso acabava os livros mais tarde que a maioria, mas nunca um livro de 90 páginas havia durado tanto. E, do alto de suas grandíssimas cartas de 2 ou 5 páginas cada, eu havia percebido que ele me escandalizava. Não da maneira provocativa, feia, com que fazem os outros livros, provocativos e feios, não: provocava como um toque macio, como um toque de pena. Não sei dizer se eu ou o livro era quem possuía a pena ao meu respeito, – quiçá, os dois –, mas sei que havia. E isso porque ele me concedia uma rara visão de mim: eu me distraia, por pura negligência.

O celular era uma forma de me distrair de mim mesmo: eu me tinha medo. Os calafrios aconteciam, e só fui perceber mais tarde, em todos os instantes em que passava por refletir a respeito do que eu fiz, do que os outros fizeram a minha pessoa, ou os dois. Acabava por querer negar minha solidão, de um jeito bruto, infantil e constrangedor. A tela fria, o coração quente, caiam tão bem quanto um remédio para dormir e um viciado em perambular pelas noites. O viciado, depois de pílulas consecutivas, cura-se do vício da insônia, mas nasce nele o vício pela cura. Assim o era. Se parasse a medicação, o vício me surgia. E a esse aspecto, o poeta alemão, tão distante aos tempos de crianças melindradas pelo soar de um software ou notificação, recriou minha vida moderna, com uma pitada de sua época. Seus conselhos, nunca proferidos pela boca coberta pelo bigode-palha, mas sempre bem escritos, abrangem o amor, a melancolia e as relações interpessoais de nosso tempo – tão caros! O fator imponente de suas cartas era a solidão e a forma certa de usá-la. A solidão, eis que fora, como todos os sentimentos, redigida como o unívoco atributo para o aperfeiçoamento mental, moral e para as compreensões de todas as características do ser. Pensa Rainer que os nossos sentimentos são qual um cômodo, onde mal o conhecemos em sua totalidade; ou seja, por assim dizer, “revela-se que a maioria de nós só chega a conhecer um canto de seu quarto, um local perto da janela, uma faixa na qual se anda para lá e para cá”. Pegando sua frase sobre a dificuldade como estímulo, — “o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la” —, a dificuldade reside nas coisas necessárias ao desenvolvimento e aperfeiçoamento do ser humano; e nós, covardes tais como somos, acovardamo-nos diante da experiência nova, sempre a buscar resolver os lamentos pela maneira mais fácil, pela maneira em que a segurança se configura mais aproximada; contudo, a solidão brota em nós o amadurecimento e a familiaridade com esse lado obscuro, consegue construir novos contornos com esse estranho, por criar amizade com ele, por racionalizá-lo, por aprender com ele a seguir novos caminhos, quer bons, quer ruins; por entender que “caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los”.

O aparelho-celular marginaliza-nos pela distração; ele nos ensina a criar amor ao amável, sem apegar-se-nos a todos os imperativos de nossa essência, sem apegar-se-nos ao que não se pode amar. Embora só, todavia, eu era envolto por caricaturas – as caricaturas de cunho semelhante àquelas utilizadas pelos pais para distrair os filhos. A cada berro, movimento brusco, a cada copo quebrado, a cada porta de madeira batida com força de quem não se sabe, as caricaturas apareciam, pediam para serem olhadas e tiravam os desafios do contexto. Embora só, eu era envolto por caricaturas, porque não conseguia me habituar a mim próprio, pois “a mim próprio” tornara-se o meu próprio pavor.

No que se refere às consequências em nossa sociedade, apegados a princípios como o de liberdade, a contemporânea gente está mais amarrada em fios de cobre do que nunca, dos quais nunca se desmancharão. São variados os estudos que relacionam os danosos efeitos neurológicos dos indivíduos com o uso de empecilhos como os das redes sociais, as quais alteram significamente a dopamina. O estudo intitulado “Ciberdependência: o papel das emoções na dependência de tecnologias digitais”, realizado por integrantes da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, ilustra bem o mencionado. Um dos dados mais relevantes ao que divagamos converge em torno do Uso Patológico da Internet, onde determinou-se efeitos, todos apontados no estudo, que correspondem a vícios e patologias, quase que referentes a uma droga do senso-comum. O meio, portanto, manchara-nos em facilidade, do qual detemos o medo do novo e fomentamos o medo do alheio; assim, inúteis ao concatenar os laços internos, jamais conseguiremos a relação profunda com o semelhante, pois mensuramos tudo, inclusive o amor, como prazer, não como propriedade evolutiva de nosso intelecto e de nossa moral.

Mas o enfoque não é em relação a estudos ou a artigos científicos, o que jaz na matéria deste texto refere-se a uma experiência própria. Os conselhos e direcionamentos de um homem a outra pessoa me comprometeram a adentrar de algum modo àquele imaginário sábio, a auxiliarem-me na saída do meio patológico. Assim o método do saber interno é o que de mais valioso consegui retirar da obra. Quanto às relações, por exemplo, o amante de Rodin, configurou-me o espírito de que o caráter interior é o que rege a mais profunda relação entre os seres humanos – foi isso o que eu escrevi logo após ler a sétima carta (14 de maio de 1904) da coletânea: Somente quando se atingir uma ordem interna estabelecida, as relações não serão mais apenas entre dois sexos, distintos ou iguais, mas entre ser humano e ser humano, onde ambos, em suas solidões, amarão-se, não por ânsia, desespero, ou domínio e submissão, mas por comunhão de independências, por um amor mútuo e igual, por solidões belas. Quanto a ojeriza ao meu lado obscuro, compreendi que é melhor a igualdade na liberdade do sentir, do que a desigualdade na restrição e servidão aos sentidos mascarados. Porque o doente existe tanto quanto o são, e a natureza que deseja a morte do doente e a vida grande ao são é a natureza que tem medo do corpo morto – de quem acabara de matar.

E foi assim que, aos 16 anos, de joelhos em contato com o chão frio, com a cara exposta na lama, meus olhos entrechocaram-se com a pena da caneta de um poeta silencioso, quieto, franzino e cheio traumas da infância, que desmontara a facilidade em tiras envergonhadas e me auxiliara pela brandura, macia, calma e penosa, a transcorrer as extremidades do que posso me alcançar a ser. “O poeta mais atual e permanente do nosso tempo”, como assim nomeara Otto Maria Carpeaux, agilizou-me ainda mais os calafrios – e eu não poderia lhe agradecer mais.

Bibliografia:

Cartas a um jovem poeta, de Franz Xaver Kappus. RS, Porto Alegre: L&PM POCKET PLUS, 2007.

Vista do Ciberdependência: o papel das emoções na dependência de tecnologias digitais (ufmg.br)

Anedonia: a incapacidade de sentir prazer – Dra Aline Rangel (apsiquiatra.com.br)

João Paulo Duarte Marques da Cruz
João Paulo Duarte Marques da Cruz Estudante do Colégio CEI, apaixonado por literatura, cinema e política. E-mail katrinadmc@hotmail.com

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