A desgraça sempre chega a galope, mas tudo o que é bom se arrasta indefinidamente no Brasil, o país dos contrastes e contradições, rico por natureza, com poucos bilionários e povo abaixo da linha da pobreza. Parece inacreditável, mas tramita há mais de trinta anos no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional o processo administrativo de tombamento de Fordlândia, o núcleo urbano com quatro mil habitantes que faz parte do município de Aveiro, construído em plena floresta amazônica nos anos 1920 pelo magnata norte-americano Henry Ford, que pretendia fazer do local um centro exportador de borracha destinado a abastecer a indústria automobilística nos Estados Unidos, na época liderada pela Ford Motors. Nessas três décadas, a descaracterização e a deterioração das edificações e equipamentos de imensurável valor histórico do lugar avançaram em ritmo frenético. Na Vila onde se concentravam as residências dos americanos que administravam o projeto, a área de interesse para tombamento agora se resume aos galpões e a quatro ou cinco casas, as demais já foram completamente alteradas, pela troca da cobertura ou pela substituição da madeira por alvenaria. O município de Aveiro não dispõe de recursos técnicos nem financeiros para assumir sozinho os ônus, sobretudo financeiros, de manter viva a história da comunidade. A demora excessiva e injustificável resultará, fatalmente, na perda total e irreversível desse rico acervo.
O juiz federal Domingos Moutinho Jr., da Subseção da Justiça Federal em Itaituba, marcou para os dias 6 e 7 de dezembro deste ano inspeção judicial e audiência pública para subsidiar o julgamento da ação ajuizada em 2015 pelo Ministério Público Federal, pedindo o tombamento do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico de Fordlândia, que já foi a cidade mais importante da Amazônia, com hospital, escolas, água encanada, moradia, cinema, luz elétrica, porto, oficinas mecânicas, depósitos, restaurantes, campo de futebol, igreja e hidrantes nas ruas. Os seringais foram desativados em razão das pragas e Fordlândia passou para o domínio da União em 1945, depois que o projeto de Henry Ford já havia sido transferido para Belterra, que então pertencia a Santarém e virou município em 1995.
Durante audiência de justificação virtual, na segunda-feira (25), com a presença do procurador da República Paulo de Tarso Oliveira e de representantes do Iphan, Universidade Federal do Pará e Uepa, representantes de Aveiro e uma pesquisadora que tenta resgatar parte do acervo histórico de Fordlândia, após ouvir várias reclamações do Iphan sobre a resistência da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que não atende às solicitações para levantar a dominialidade da área territorial do distrito e dos imóveis que remontam à época em que Fordlândia foi edificada, o juiz mandou citar a União para integrar o processo e adotar medidas em relação à preservação do patrimônio histórico artístico e cultural do distrito.
O magistrado determinou também ao Iphan que deixe acessível a qualquer cidadão o processo de tombamento histórico de Fordlândia no SEI, em seu site. Mandou ainda que o Instituto apresente o resultado de levantamento fotográfico que deverá ser realizado nos dias que antecederão à vistoria e audiência pública.
O juiz Domingos Moutinho contou que em 2016, fascinado pela história da experiência de Henry Ford na Amazônia, visitou Belterra e Fordlândia, onde constatou o abandono do acervo por ele classificado de “extraordinário”. “Independentemente do julgamento que cada um é livre para fazer sobre o projeto de exploração da borracha na região, a história não pode ser apagada”, salientou, aduzindo que “a história da Amazônia, a história do Pará é a história da omissão do estado. Essa história se repete em Itaituba, que é uma parte muito ilustrativa dessa omissão, com problemas de exploração de garimpo sem controle e do desmatamento. Tudo é um retrato da omissão do estado”. Moutinho lamentou que se dissemine a ideia de que Fordlândia é uma “cidade-fantasma” e considerou que “isso reflete, em menor escala, a noção de que a Amazônia é um vazio demográfico. Sob essa premissa, ficamos à míngua de políticas públicas. Somos objetos dessas políticas, e não sujeitos”.
A superintendente do Iphan no Pará, Rebeca Ribeiro, atribuiu à má vontade da SPU a impossibilidade de concluir o processo de tombamento. “Eles não nos atendem, não nos respondem e não comparecem a reuniões. Sugiro que a SPU seja colocada no processo. É muito difícil o diálogo com eles. É muito complicado”. Ela também se queixou de que no Pará o Iphan conta com apenas quatro arquitetos para trabalhar num estado que tem mais de quatro mil imóveis tombados.
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