O primeiro restaurante da história, ao menos com esse nome, foi aberto em Paris, como se sabe, em 1765. Desde sempre houve tabernas, tabernáculos, mercados e barracas de rua onde as pessoas comiam, mas aquilo era, de fato, uma novidade: um sujeito oferecia uma refeição suculenta e forte e finalizava com uma sobremesa. E era uma novidade oferecida em latim: “Venite ad me vos qui estomacho laboratis et ego restaurabo vos“, estava escrito na fachada do estabelecimento.
Certo, o latim (confirmem os latinistas de plantão) era sermo vulgaris, mas dizia o seguinte: “Vinde a minha casa homens de estômagos cansados que eu os restaurarei“.
Pois bem. Tratava-se de um lugar que “restaurava”. E daí o termo restaurante.
O citoyen que inventou esse serviço chamava-se Dossier Boulanger. Seu cardápio era simples: um caldo de carne revigorante, forte, denso. Em francês um bouillon.
E isso me permite passar a outro assunto: Bouillon de culture, caldo de cultura, que foi o nome de um programa de televisão da França que, tratando de literatura, atingia picos de audiência. Morei quatro anos por lá e ver esse programa se tornou um ritual para mim. Era apresentado por Bernard-Henri Pivot, falecido há dois meses.
Nesse programa de tv, Pivot recebia convidados ligados ao mundo literário, das artes, da filosofia e das ciências humanas em geral. Para mim, o ponto alto da emissão era quando ele aplicava o famoso “formulário de Proust” a seus convidados – e, particularmente, quando ele chegava à última questão.
Já ouviram falar sobre o “formulário de Proust”? Era uma brincadeira que o escritor Marcel Proust fazia, quando tinha dezesseis anos de idade, com seus amigos: uma lista de umas 50 perguntas, das mais simples (qual sua cor preferida) às mais graves (qual a primeira coisa que você gostaria de ouvir de Deus quando chegar ao céu?).
E precisamente essa questão me interessava.
De minha parte, me diverti respondendo o tal questionário e reproduzindo-o para alguns amigos. Para a pergunta “Qual o seu palavrão favorito”, minha resposta foi simples: “Merda!”. Creio que empreguei-a corriqueiramente ao longo dos anos. (Ah, minha esposa me contou que, quando criança, longe dos ouvidos dos pais, ela costumava empregar um aditivo significativo a esse mesmo ingênuo palavrão para expressar seu desagrado em relação a tudo que lhe parecia inconveniente nesta bordavida: “Merda, cocô e bosta!”.
(Até hoje me divirto pensando nessa menininha bonitinha dizendo Merda, cocô e bosta…)
Para a pergunta “Homem ou mulher que deveriam ilustrar uma nova cédula ou moeda?” lembrei de Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras do Brasil, autora do clássico “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, sucesso de vendas aquando de seu lançamento, em 1960.
Já a respeito de “A planta ou animal em que você gostaria de reencarnar?”, confesso que hesitei muito. Acho o mundo vegetal muito monótono e o mundo animal muito agressivo (bem, tanto quanto o “nosso”), e, receando o constrangimento de reencarnar em qualquer coisa que pudesse ser devorada por um bicho maior, considerei a possibilidade de reencarnar num condor dos Andes, herbívoro (eu não iria me dispor a comer carne crua) habitando uma reserva ambiental monitorada por instituições ambientalistas sérias. Creio que estaria seguro – e as paisagens seriam ótimas. De todo modo uma coisa é certa: gostaria de reencarnar num bicho que voe.
Por fim, a respeito da última pergunta do formulário, “Qual a primeira coisa que você gostaria de ouvir de Deus quando chegar ao céu?”, preciso dizer que, sobre ela, pensei longamente, durante uns vinte anos. Inclusive tive algumas insônias, obcecado com essa questão metafísica.
Longamente, considerei que uma boa resposta para ela seria ouvir de Deus um simples e reconfortante “Seja bem vindo!”, mas cheguei à conclusão de que deveria aproveitar a oportunidade para ouvir Dele a resposta para a coisa que mais me incomoda na vida: “Sente aqui que agora eu vou lhe explicar a razão da fome no mundo”.
Bem, sempre pensei ser um dever moral, cobrar acquittance de nossos líderes.
Mas, voltando à questão dos restaurantes, há a referir a noção de thermopolia, que equivale, no mundo antigo, ao que hoje chamamos de “um lugar onde comer”. E isso costumava ser um balcão ambulante – um food truck da antiguidade – ou um balcão fixo, instalado em pequenos estabelecimentos. Pompeia chegou a ter 80 thermopoliae, segundo dados arqueológicos. Do que dizer que já no mundo romano quase nnao se voltava para casa para almoçar…
Por sinal, thermopolia é uma palavra que evoca restauração, porque termos significa quente, e polia significa lugar de venda, ponto de venda. E daí voltamos ao começo desta crônica, quando Dossier Boulanger inaugurou, em Paris, em 1765, o seu Restaurant, o lugar de restauração do corpo, pela primeira vez empregando essa palavra que se tornou tão comum na contemporaneidade.
Ah, tem uma pergunta no questionário de Proust que tem a ver com isso: “Qual comida desejaria comer pelo resto da eternidade?” Absolvido do pecado da gula – posto que pela oferecida eternidade – eu responderia a essa questão, sem qualquer hesitação: maniçoba. Alguém me acompanha?
(Na imagem, o escritor Marcel Proust)
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